Hoje cheguei em casa antes da
minha filha Vitória.
Desceu do carro e veio direto com
o seu jeito característico de caminhar e me disse sem falar outra coisa: Pai, hoje
deixei o prato cair no chão.
Pra quem ainda não conhece a Vitória
ela é hoje uma menina de 19 anos que no segundo dia de vida começou com crises
convulsivas e por um infecção acabou sendo vítima de uma paralisia cerebral. A
história é longa.
Daquele dia pra frente nada que
me viesse com sabor de tranqüilidade poderia ser totalmente aproveitado na
plenitude. Como até hoje.
É como ser apresentado ao
desconhecido e ter de aprender a lidar com ele sem ao menos um manual.
Eu e minha sempre companheira
Lúcia éramos dois perdidos em um lugar onde mesmo os mais chegados não lhe
sabem dar uma explicação se não o apoio para sustentar o insustentável.
Do nascimento dela pra cá nada
mais foi fácil.
Deste problema todo e dos anos
que se passaram e entre alguns médicos céticos que não acreditavam em parte da
recuperação da Vitória pela estimulação precoce, muitas foram às idas e vindas
e pra ela com o seu jeito cativante sobrou uma paralisia no lado esquerdo do
corpo e um déficit de aprendizado que não lhe da condição de se alfabetizar.
Entrar na sua vida e tentar
desvendar o que se passa por dentro de uma cabeça para entendê-la e não
permitir que sofra por aquilo que eu não conseguirei solucionar como Pai, é uma
das coisas mais desesperantes possíveis. Afinal como Pai proteger é instintivo
e não queremos o sofrimento dos filhos mesmo que seja necessário para o ser
humano amadurecer.
Lidar com a maior idade dela tem
sido um caso novo em nossas vidas, mesmo porque quando ela envelhece, nós
envelhecemos mais ainda.
No colégio na infância as coisas
são menos evidentes, porém na maior idade se lida com o definitivo. É do que
temos para o que poderemos oferecer.
Ela vê o irmão falar sobre as
evoluções no colégio, os temas a vida que progride dentro do sistema da
normalidade de alguém que cresce se preparando para um dia ter total independência.
Ela tenta se enquadrar no sistema,
fala como se esse universo também lhe pertencesse, e pertence, porém com uma
limitação que não lhe permite algum dia ser totalmente independente.
Liberdade de cuidar de sua higiene,
do seu ir e vir, de seu próprio futuro.
E agora chego aonde queria chegar
quando comecei a escrever.
O que fazer pra não deixar o
prato cair?
Em algum momento ele irá cair é lógico
em todas as nossas vidas. E como lidamos com o constrangimento?
Desviramos o prato e seguimos em
frente afinal não somos limitados pra isso.
Porém quando a Vitória deixa o
prato cair no chão, à vida lhe joga na cara aquilo que ela tenta contornar sem
nunca ter escolhido vivenciar.
Ainda que as condições cognitivas
não lhe permitam a alfabetização, o funcionamento do cérebro não lhe tirou a
percepção dos outros.
Não lhe restringiu saber da sua
própria limitação.
Sim, cair o prato pra ela é muito
mais que uma simples distração é saber que da vida todos os dias terá de
enfrentar o que para outros é um simples acaso ou um fato engraçado.
E mesmo eu sabendo o quanto isso
doe pra ela perguntei: e aí filha o que você fez?
Queria limpar Pai não deu. Peguei
outro!
Enfim a vida segue.
São coisas da vida. É a nossa
vida!